quinta-feira, 9 de outubro de 2014

LIMA BARRETO, JORNALISTA E ESCRITOR DO POVO BRASILEIRO

Somente após a sua morte, Lima Barreto foi reconhecido como um dos mais importantes literatos brasileiros; quando em vida, o seu jornalismo militante e de princípios éticos foi o que mais o distinguiu.

Literariamente podemos afirmar que encarnou o difícil momento de continuidade e ruptura entre um passado que morria com Machado de Assis e um futuro que pertenceria ao movimento modernista. Se por um lado foi fiel ao modelo do romance realista e naturalista, resgatando as tradições cômicas e picarescas da cultura popular, por outro, seu estilo despojado, fluente e coloquial, tanto influenciaria os modernistas, quanto antes havia enfurecido os parnasianos.

Com relação ao jornalista Lima Barreto, este não possuía apreço especial pela grande imprensa de sua época. Sua atenção era mais voltada para a imprensa alternativa. “ Gosto dos jornais obscuros, gosto dos começos, da luta entre a inteligência e a palavra, das singulariedades, das extravagâncias, da livre ou buscada invenções dos principiantes”. Coerente com esse pensar, por toda a vida foi solidário com aqueles que lutavam por causas que ficavam acima “dos mesquinhos interesses pessoais”.

Em 1907, coerentemente, editou uma pequena revista, O Floreal. Verdadeira peça jornalístico- literária, em cujas páginas surgiram publicados os primeiros capítulos de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”. Apesar de haver existido somente até o quarto número, a revista não passou despercebida do olhar atento de José Veríssimo. Ele reportaria suas impressões na prestigiosa Revista Literária do importante Jornal do Commercio. Pela primeira vez o nome de Lima Barreto seria divulgado para o grande público.

As concepções revolucionárias a respeito dos objetivos da obra de arte e do papel do escritor engajado com a problemática nacional, podem ser exemplificadas em algumas citações transcritas de seus escritos:

“A obra de arte tem que dizer o que os simples fatos não falam. E eles estão aí para fazermos grandes obras de arte… Ela tem o destino de revelar umas almas às outras, de restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo entendimento entre os homens.”

“Os escritores brasileiros não deveriam perder tempo nem amesquinhar-se em cantar cavalheiros de fidalguia suspeita e damas de uma aristocracia de armazém por atacado.”

“A arte deve ser um instrumento de edificação moral da população. Devemos mostrar que um negro, um índio, um português ou um italiano podem-se entender e se amar, no interesse comum de todos nós.”

“A solidariedade humana, mais que nenhuma outra coisa, interessa ao destino da humanidade.”

Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro, em 1881. Era filho de um tipógrafo, negro liberto, e sua mãe era professora primária, também descendente de escravos.

Concluiu o curso secundário na Escola Politécnica, contudo, a falta de dinheiro obrigou-o a abandonar a faculdade de Engenharia. Sustentava-o o emprego como escrevente na Secretaria de Guerra, obtido graças à indicação de seu padrinho, o Visconde de Ouro Preto.

Durante toda a vida enfrentou tanto o preconceito por ser mestiço quanto por ser um revoltado. Pobre desde o nascimento e por toda a vida, a solidão e a boemia levaram-no ao alcoolismo. Crises de alucinações e delírios provocaram a sua internação por duas vezes na Colônia de Alienados da Praia Vermelha. Seus sofrimentos na Colônia foram relatados de forma poética em O cemitério dos vivos.

Lima Barreto faleceu no primeiro dia do mês de novembro de 1922, vítima de ataque cardíaco, aos quarenta e um anos de idade, reconhecido mais como jornalista de vanguarda, que pela enorme contribuição literária deixada para a posteridade.

Logicamente, o emprego na Secretaria de Guerra lhe trazia entraves à livre expressão do seu pensar. “Durante os quinze ou dezesseis anos em que guardei as conveniências da minha situação burocrática, comprimi a muito custo a minha indignação e houve mesmo momentos em que ela, de certo modo, arrebentou”. Um desses arrebentar foi “Policarpo Quaresma”, sátira política pouco igualável no romance brasileiro. Outro foi Clara dos Anjos, um libelo literário contra o racismo sofrido pelos negros e mestiços.

A maior parte das crônicas, ensaios e materiais jornalísticos foram originados entre 1918 e 1922, após a aposentadoria por doença. Alguns meses antes de falecer ele organizou o material jornalístico sob o título de “Bagatelas”, publicado anos após. São escritos coloquiais e descuidados, quase familiares, fora do tom formal de seu tempo.

Sem ser panfletário, Lima Barreto esgrimia uma áspera crítica política, social e de costumes. Nenhum cronista de sua época soube como ele perceber as consequências políticas do pós Primeira Guerra Mundial e denunciou a farsa de Versailles, “que produziu um tratado de paz cujas condições e cláusulas trazem em seu bojo a próxima guerra”.

Pacifista convicto, expressava o sentido do humanismo: “o objetivo da civilização não é a guerra, mas sim, a concórdia entre os homens de diferentes raças e de diferentes partes do planeta; é o aproveitamento das aptidões de cada raça ou de cada povo, para o fim último do bem estar de todos os homens”.

De formação eclética, heterodoxa, uma mistura de positivismo com anarquismo e pitadas de um liberalismo a la Spencer, ele se auto enquadrava filosicamente como um maximalista. No artigo intitulado “No ajuste de contas”, o autor propõe uma série de medidas que a seu ver, caso implementadas, viriam resolver a maioria dos problemas brasileiros. Com coragem, Lima Barreto declara que se inspirara na Revolução Soviética para propô-las: “revolução que viera abalar não apenas tronos, mas fundamentos de nossa vilã e ávida sociedade burguesa… não posso esconder o desejo que tenho de ver um movimento semelhante aqui, de modo a acabar com a chusma… precisamos deixar de panacéias, a época é de medidas radicais.”

O jornalista Lima Barreto foi, sem dúvida, o crítico mais agudo da República Velha, rompendo com o nacionalismo ufanista e pondo a nu a roupagem republicana que manteve os antigos privilégios de políticos, de famílias aristocráticas e de militares. No Manifesto Maximalista ele expressa um ardente desejo de revolução social: “Cabe aos homens de coração desejar e apelar para uma violenta convulsão que destrone e dissolva de vez essa societa sceleris de políticos envolvidos com comerciantes, industriais, jornalistas ad hoc, que nos esfaimam, emboscados atrás das leis republicanas.”

Quando a greve insurrecional de 1918 eclodiu no Rio de Janeiro, assim como já havia feito com a greve de 1917 em São Paulo, solidarizou-se imediatamente com a mesma. Em Carta Aberta ao Presidente Rodrigues Alves, denuncia a violência e as calúnias policiais, amplamente difundidas pela Grande Imprensa do ponto de vista da repressão. “Se o chefe de polícia tivesse expedido uma circular a tal respeito, em papel com o timbre da polícia, a obra sairia igual a todos os artigos de nossos grandes jornais.”

Num período em que o Congresso Nacional aprovava açodadamente as leis de excessão contra os movimentos grevistas, foi do jornalista mulato a voz de mais alta denúncia. “É essa a República que desejamos?”

Foi Lima Barreto quem cunhou em nossa imprensa o termo plutocratas para os representantes de nossas elites corruptas. “O Estado atual é o ‘dinheiro’ e o ‘dinheiro’ são os plutocratas que açambarcam, que fomentam guerras, que elevam vencimentos para aumentar os impostos, de forma a drenar para seus cofres todo o suor e todo o sangue do País, em forma de preços e juros.”

Os plutocratas também eram os latifundiários e nosso escritor tinha claro, em 1920, que a reforma agrária era a condição indispensável para o livre desenvolvimento da economia nacional. Para ele era necessário antes de tudo, “dividir a propriedade agrícola, dar a terra ao homem que efetivamente nela trabalha e não ao doutor vagabundo e parasita, que vive na Casa Grande, no Rio ou em São Paulo”.

As ilusões e, após, as desilusões do major Policarpo Quaresma estavam intimamente ligadas às condições da vida rural brasileira. “Havendo tanto barro, tanta água, porque as casas não eram de tijolo e não tinham telhas?” “Pensou ser um homem … mas aquilo era uma situação de camponês da Idade Média e começo da nossa: era o famoso animal de La Bruyère que tinha voz humana articulada.”

Destoava da grande maioria dos jornalistas de seu tempo os sentimentos anti-ianques do nosso grande escritor negro. O estilo de vida que a burguesia norte-americana pretendia apresentar ao mundo como padrão ideal da sociedade capitalista, como o supra-sumo da ordem e da prosperidade, era o aspecto que mais execrava, daí os seus ataques aos “hipócritas norte-americanos”. Dizia que o “fundo do espírito americano é a brutalidade”. E denunciava com sarcasmo e sem medo aqueles colegas que se embasbacavam diante do colosso: “Nós só vemos dos Estados Unidos o verso, mas não vemos o reverso ou o avesso; e este é repugnante, vil, horroroso… Quando os americanos falam em paz e outras coisas bonitas, é porque premeditam alguma ladroagem ou opressão.” Em “O nosso ianquismo”, Lima Barreto resumiu tudo numa frase: “ no fundo, não passamos de um disfarçado protetorado”.

Pese toda a repulsa que lhe inspirava a República Velha, assim como a revolta contra a subserviência ao “ grande irmão do norte”, nosso escritor jamais se permitiu o pessimismo em relação ao desenvolvimento de nosso País. E previu o que, felizmente, após quase um século, ensaia alguma evolução:

“Não dou cincoenta anos para que todos os países da América do Sul, Central e México se coliguem a fim de acabar de vez com essa atual pressão disfarçada dos ianques sobre todos nós, e que a cada dia se torna mais e mais intolerável.”

Texto de Carlos Russo Jr


SOBRE O AUTOR 

Carlos Russo Jr. pertence à geração de 1968. Já neste ano estudava Medicina na Universidade de São Paulo. Líder estudantil a repressão obrigou-o a deixar a faculdade e atuar na clandestinidade. Foi preso político em 1970 e condenado a 14 anos de prisão; libertado por condicional exilou-se na Argentina, onde permaneceu até o golpe militar de 1976. Retornou ao Brasil semi-clandestino. Ingressou em 1979 na Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo e formou-se em 1983. Pós-graduado em negócios pela FBM, atuou na área de saúde até sua aposentadoria em 2010. Desde então, dedica-se à Literatura e Filosofia, mantendo militância política na esfera de defesa dos direitos humanos.



Nenhum comentário:

Postar um comentário